Dos meus livros - A Picada de Abelha, de Paul Murray

Quando a leitura de um livro se torna imersiva, me faz querer aproveitar todos os momentos para ler mais uma página e ao fim de mais de 700 páginas não há ponta de cansaço ou aborrecimento, então para mim esse livro já é uma obra-prima, assim foi com A Picada de Abelha, do irlandês Paul Murray.
Não será bem uma saga familiar, porque acompanhamos esta família apenas num reduzido intervalo de tempo, ali à volta de um ano, mas mergulhamos na vida dos Barnes, uma família outrora endinheirada, com um avô rico a viver uma reforma dourada no nosso Algarve, antes da crise de 2008 assolar a Irlanda, e percebemos como o passado nunca se resolve sozinho, que um passado mal resolvido corrói-nos em lume brando, quando damos espaço aos nossos fantasmas a comunicação numa família torna-se sempre algo muito difícil.
A maioria dos leitores achará que a história se resume a nada e que é tudo muito aborrecido, sem ação para preencher tantas páginas, mas aqueles leitores que se deixam entusiasmar por enredos em que uma família se vai magoando, desiludindo, afastando, isolando, para essas pessoas que apreciam autores como Jonathan Franzen, então A Picada de Abelha é leitura certeira.
Murray oferece-nos sempre o olhar de cada elemento da família, o narrador vai saltitando entre o pai, a mãe e os dois filhos, e é impressionante o fulgor com que ora está na cabeça da mãe e a seguir na do filho adolescente, como transita entre personagens tão diferentes sempre de forma tão credível, aquela mãe a chegar aos 40 anos pensa mesmo aquilo, aquele filho de 12 anos usa mesmo aquela linguagem tão própria de adolescente, Murray constrói personagens muito completas, cada uma com o seu peso, com os seus traumas, com a sua argúcia, nós ficamos a saber efetivamente como aquelas personagens se sentem.
A escrita de Murray é sem dúvida muito rica, é trágica mas sempre com comédia de permeio, inteligente e criativa, que até brinca com coisas como a pontuação e formatação para moldar melhor cada personagem, alternando constantemente entre o humor e a sátira com a dureza, até crueldade, entre famílias, sim, entre famílias que se gostam, entre os melhores amigos, há todo um espaço para as nossas frustrações germinarem, a tensão está sempre lá, Murray permite que as suas personagens sejam simplesmente humanas, sem branquear os nossos lados sombrios.
Murray vai construindo uma trama em que as permanentes evocações do passado, flash-backs, vão desnovelando aos poucos segredos que nos conduzem a um final que acaba com estrondo, que nos vai deixar ou atónitos ou muito irritados, consoante o tipo de leitor que nós formos.
A Picada de Abelha, finalista do Booker Prize e eleito como um dos dez melhores livros de 2023 por jornais como o The New York Times, é um romance verdadeiramente arrebatador.







