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BURRO VELHO

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27
Jun25

Dos meus livros - A Caverna, de José Saramago

BURRO VELHO

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A Caverna é um romance onírico sobre uma realidade distópica não muito distante, é impressionante como José Saramago há mais de 25 anos antecipou um mundo em que há sempre um vigilante a olhar para nós, em que cada vez mais a nossa individualidade é refém do consumo e do progresso, sim, quando não conseguimos resistir aos melhores smartphones estamos sempre, em certa medida, a escancarar uma parte da nossa intimidade a alguém que nos observa.

Saramago escreve sempre para além do literal, nesta alegoria construída a partir da nobre arte de trabalhar o barro, em cada frase há sempre um simbolismo, um regressar às nossas raízes, à liberdade de sermos quem somos, a valorizarmos os nossos tesouros muitas vezes negligenciados, o amor, a família, o trabalho digno, a bondade, o luxo de vivermos num tempo lento.

Admito que a minha leitura teria tido um fôlego diferente se o livro tivesse menos 30 ou 40 páginas, a páginas tantas senti-me um pouco estagnado e impaciente, mas A Caverna é um romance muito bonito, doce, simples, em que o supérfluo dá lugar à essência, mas mais do que uma certa candura e inocência que atravessa todo o livro, o que mais me seduziu foi o que sempre me seduz em Saramago, a sua prosa tão bonita, a facilidade com que escreve frases bonitas, a forma como com um vocabulário despojado constrói a sua própria linguagem com uma força poética muito rara.

 

26
Jun25

Dos filmes de que gostamos - Queer, de Luca Guadagnino

BURRO VELHO

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Luca Guadagnino é dos realizadores mais camaleónicos e entusiasmantes que temos atualmente a filmar, reconhecendo-lhe o veio criativo em filmes mais gore que eu dispenso (Suspiria ou Ossos e Tudo), assina alguns dos meus filmes ou séries preferidos dos últimos anos, - Io Sono L’amore, Call Me By Your Name, Challengers, ou We Are Who We Are -,sempre na procura da identidade e do amor, quase sempre um amor inaugural.

 Queer, o seu último filme estreado em Veneza em 2024, chega com o seu protagonista rotulado como o grande derrotado nas nomeações aos óscares do ano passado, portanto, um Guadagnino com Craig em estado de graça, nada podia falhar, certo?

Certo. Nada falhou. Mas.

A história de amor, sempre inaugural, é a de um cinquentão americano refugiado no México dos anos 50, um passado misterioso que só mais tarde é que nos é dado a conhecer, que se perde de amores por um jovem dandy absolutamente enigmático, impossível de decifrar, ele também é queer ou não, ele gosta de mim ou não, ele corresponde-me ou não, levando esta dúvida permanente e um amor tumultuoso a que Craig perca o seu controlo, afundando-se num mundo de álcool e opioides, ao ponto de se enfiar no meio da selva do Equador à procura duma alquimia qualquer que o faça comunicar telepaticamente com o jovem rapaz, se ele soubesse o que ele efetivamente pensa no seu íntimo, Craig, ou William Lee, alcançaria finalmente a sua redenção.

A história é linda, excessiva, por vezes arrebatada, descontrolada porque o amor arrebatado descontrola-nos, baseada no romance homónimo do senhor generation beat, William S. Burroughs, filmada com uma grande entrega dos corpos, corpos sempre transpirados, que vestem linhos impecáveis e malhas elegantes mas que não resistem à viscosidade tropical, corpos sujos, que se deixam sujar, que na falta do amor se deixam ir com mescal, tequilas, heroína, cocaína, o que houver.

A estética de Queer é portentosa, a estética dos filmes de Guadagnino é sempre portentosa, intensa, com cores saturadas, os cenários naíve a descomprimirem alguma opressão e repulsa que vamos sentindo, a seguir à elegância vem sempre a sujidade peganhenta, nos bares, nos quartos de hotel, na densidade da floresta tropical, toda aquela viscosidade quase que se nos agarra à pele.

Porquê o Mas?

Sendo Queer uma história de Burroughs, Burroughs está (e bem, muito bem) impregnado em todo o filme (tal como estava em O Festim Nu, de David Cronenberg), o seu universo de tripes psicadélicas alimentadas a alucinogénios em que tudo é um delírio, uma sequência de imagens sem sentido de quem está pedrado, e nessas partes eu perco-me, quando a personagem está a tripar e tudo o que vemos é tonto só porque sim, então aí eu perco o filme e espero que a viagem termine, e para mim estas quebras dramáticas fazem o filme perder a força.

Tenho ainda de falar de duas coisas.

Lesley Manville. Para mim Manville personifica a classe britânica, algures entre a dona de casa das Midlands e a aristocracia, e poder vê-la a divertir-se em modo bruxa escardicenta e alucinada no meio da selva foi imperdível.

A banda sonora, Guadagnino tem sempre o dom de escolher as suas bandas sonoras, ultimamente com a dupla Trent Reznor e Atticus Ross, em Queer com a provável colaboração do nosso, grande, Caetano Veloso, fantástico.

Pessoalmente não aderi em absoluto a Queer, por vezes perdi-lhe o interesse, mas Queer tem muitas coisas geniais e consegue ainda assim ser um excelente filme, não só pelo romantismo da história, mas também por toda a sua estética.

E Daniel Craig? Sim, foi muito injusto não ter conseguido a nomeação para os óscares (foi nomeado para os Globos e uma chusma de outros prémios), a sua luta à procura do amor e da redenção é assombrosa.

 

24
Jun25

Do estado da política e do mundo - chorar ou continuar a esquecer?

BURRO VELHO

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Tenho andado como aqueles três emojis dos macaquinhos que não falam, não ouvem e não veem, e a minha saúde mental muito agradece que assim continue, que é como quem diz, o mais alheado possível da triste realidade.

Se olharmos para lá das nossas fronteiras, num mundo em que a Nato deixou de ser qualquer segurança, bastam quatro nomes apenas para nos deixarem deprimidos e amedrontados, cagadinhos de medo, pardon mon french mas talvez seja mesmo essa a expressão mais indicada, Trump, Putin, Netanyahu e Khamenei, e fiquemos por aqui.

Dentro de portas, a intensidade do medo e o grau de insanidade não se compara, obviamente, mas também não está para sorrisos esperançosos, e não, eu não sou sempre do contra, há algumas coisas que até me parecem serem sinais positivos, sim, eu concordo com a intenção de se rever a lei da greve, de se ser mais rigoroso com quem quer imigrar, ou em dificultar a obtenção da nacionalidade portuguesa, como é possível que as meninas gémeas brasileiras tenham conseguido esse passaporte com tanta facilidade, como?

Mas os sintomas não são bons prenúncios.

Um primeiro-ministro cuja estatura moral e sensação de poder lhe permite fazer trocadilhos perigosos, e estou a ser muito benevolente com o adjetivo escolhido, com a raça lusitana (será que o Eusébio ainda tem lugar no panteão, questiono).

Um Governo a dificultar o direito à reintegração das famílias dos imigrantes porque bom bom é eles virem fazer o trabalho de escravo e permanecerem invisíveis, mudos e quedos.

Ou então um Moedas que desculpabiliza a agressão de um fascista a um ator, invocando horrores idênticos à extrema-esquerda (a sério? Hoje, em 2025?).

Ou um secretário regional da Madeira que insulta de forma abjeta deputadas eleitas, Eduardo Jesus de seu nome, não esquecer, e o senhor não se demite, o Presidente do Governo Regional da Madeira não o demite e o povo madeirense continua alegremente a votar neles, até porque, pasme-se, as palavras proferidas estão todas no dicionário, diz o senhor secretário da ... cultura, ironia das ironias.

Ou um PS com um brando Secretário-geral por ausência de comparência de eventual oposição interna, ou um Chega inflamado pelos tantos portugueses que perderam o pudor em assumir a pureza da raça, a tal, a suposta lusitana.

Todos nós vamos mudando com o tempo, mas se é um facto que eu terei mudado, é igualmente facto que este PSD mudou muito mais, que saudades daquele tempo em que ao invés de sorrisos escarninhos, tínhamos partidos humanistas ao comando do país.

E que o mundo não se esqueça da Palestina!

🙈🙉🙊

 

21
Jun25

Dos espetáculos que adoro - Walking Mad / Cacti, pela Companhia Nacional de Bailado

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Enquanto apreciador e consumidor de arte gosto das várias formas de arte, dentro das artes performativas, aquelas em que o artista expressa a sua arte perante um público, uma audiência, é indescritível poder assistir a uma peça de teatro ou a um concerto, seja ele de música moderna, clássica, jazz, fado, ópera, não importa o estilo (dispenso a maioria da eletrónica e fujo do rock pesado).

Mas se me aparecesse uma lâmpada mágica e dissesse que até ao final dos meus dias eu só poderia ver ao vivo um destes tipos de arte, neste exercício absurdo de retórica, eu escolheria, sem hesitação, a dança, e se a lâmpada me obrigasse ainda a escolher entre a dança clássica ou a moderna, a moderna, pois então, é aonde consigo sentir uma conexão mais forte entre o artista em palco e aquilo que eu estou a sentir, não é preciso compreender absolutamente nada, só sentir.

A Companhia Nacional de Bailado tem atualmente em cena, até 29 de junho, dois espetáculos de dois coreógrafos suecos, Walking Mad, de Johan Inger, e o mais sonoro Cacti, de Alexander Ekman.

Cacti, ao som de Haydn, Beethoven e Schubert, é provocador, exuberante, divertido, é arrojo visual, e ao lado dos bailarinos temos o Quarteto de Cordas de Matosinhos, que momento lindo.

 Mas se gostei muito de Cacti, fiquei siderado com Walking Mad, ao ritmo do Boléro de Ravel, e também de Arvo Part, temos sensualidade, perigo, tensão, fisicalidade, graciosidade, sombras, linhas, movimento, sedução, proteção, coletivo, tudo com grande arrebatamento emocional.

Lamento que os nomes dos nossos bailarinos sejam tão desconhecidos do público, conhecemos o Marcelino Sambé e o António Casalinho e mais nenhum - não percebo patavina de dança, ou da técnica de dança, não tenho competências para um juízo sabedor, mas deixo-lhes aqui a minha homenagem com os nomes de dois bailarinos que me deixam sempre flabbergasted, Miguel Machado e Inês Ferrer, o meu olhar nunca os perde de vista, nem por um segundo.

Bravo! Bravíssimo!

 

20
Jun25

Das idas à Feira do Livro - Lisboa 2025

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Ir à Feira do Livro, já aqui perorei sobre as minhas idas à Feira do Livro - o que nos faz aguentar as filas e o calor para teimosamente irmos à Feira do Livro, quando os preços não são assim tão mais convidativos do que nas livrarias? Sim, eu sou daqueles que nunca faz grandes negócios, não sou bom a andar lá a esgravatar à procura de bons achados.

A resposta passa pela festa, pela algazarra, pelo frenesim à volta dos livros, pelo sítio bonito, por vermos caras conhecidas e autores a quem poder pedir um autógrafo, é imperdível, e as farturas no final, claro, é impensável não ir.

Este ano fui com apenas um livro na mira, vou lá comprar aquele, se por acaso encontrar aqueles outros dois também aproveito, mas é ir e vir embora, não me vou espalhar, pois bem, tá bem abelha – impõe a verdade que se diga que comprei de facto aqueles três desejados e os outros tiveram bons descontos, este ano quebrei o enguiço e fiz boas compras.

De vez em quando gosto de arriscar novos autores, sejam clássicos ou novatos, faço-o com gosto sempre que me oferecem um livro improvável, mas é-me difícil sair da bolha dos meus eleitos, sou-lhes fiel, demasiado, talvez, e nas minhas escolhas deste ano não ousei, não é desta que me vou aventurar por novos escritores ou escritoras.

Não estando minimamente preocupado em preencher quotas, notei, ainda assim, alguma diversidade nas minhas aquisições – maioritariamente homens com apenas duas mulheres (que muito admiro), metade dos autores estão vivos e metade já falecidos, a maioria dos livros foi escrita no século XX mas com alguns mais recentes, um deles acabadinho de ser lançado, oriundos de várias geografias e continentes, com predomínio dos anglo-saxónicos (não há como evitar), mas também com portugueses, um sul americano e uma francófona de origem marroquina a residir em Lisboa, achei interessante.

Gosto muito dos meus atores, destes e dos outros que andam lá por casa, e estou muito entusiasmado com as minhas próximas leituras, tão cedo não darei conta desta trupe.

E com o saco já tão pesado e a caloraça que estava, farturas nem vê-las.

 

19
Jun25

Das séries de que gosto - The Pitt

BURRO VELHO

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The Pitt é uma série dos diabos, eu que sou sempre muito disciplinado e sou daqueles que vejo um episódio de cada vez, aqui não resisti à necessidade sôfrega de ver mais e mais.

The Pitt é um misto de ER – Serviço de Urgência (com os mesmos produtores e protagonista, Noah Wyle) e 24, cada episódio, de duração aproximada de uma hora, corresponde ao tempo real da narrativa, temos, portanto, 15 episódios que correspondem à duração de um turno de 15 horas do serviço de urgência de um hospital de Pittsburgh.

A fórmula das séries de hospitais é sempre vencedora para quem aprecia o género, The Pitt não segue os cânones, desde logo pela tensão que trespassa para nós, ficamos completamente em suspenso daquelas personagens, tal o grau de verosimilhança dos procedimentos que vamos vendo, bem como o ritmo frenético do desenrolar de situações, tudo isto carburado pelas muitas histórias colaterais que vamos testemunhando, umas com arcos narrativos maiores, outras mais subtis, mas sempre muito credíveis e capazes de prender a nossa atenção.

E é inevitável a homenagem aos médicos e enfermeiros que vivem sob grande pressão num serviço de urgências, muitas vezes claudicando, vulneráveis, outras fortes e frios, mas sempre comprometidos em salvar o doente, mesmo que tal os prejudique forte e feio, uns verdadeiros heróis - por coincidência, esta manhã cruzei-me com a jovem médica que há dez anos atrás me fez sofrer desmesuradamente, com toda a incúria e insensibilidade deste mundo, numa noite de urgência, mas essa será a exceção que confirma a regra (e eu portei-me bem e não me atirei ao seu gasganete, claro).

No meio de tanta adrenalina e de histórias pessoais, The Pitt lança ainda inúmeras pistas de reflexão, que na América atual não é coisa pouca, é coisa muita, a racialização dos cuidados, as restrições ao aborto ilegal, o consumo de drogas, a obesidade, a barreira linguística, as horas de espera, os tiroteios em massa, o fanatismo religioso, e até a questão das vacinas nestes tempos de horror com o tal de Robert Kennedy Jr. aos comandos da saúde daquelas bandas.

Podem dizer que é uma série leve mas do melhor entretenimento que há, como preferirem, que tem algumas incoerências e é muito hiperbolizada, concedo, mas The Pitt é uma série mesmo muito muito boa.

Na Max.

 

18
Jun25

Dos meus livros - Afirma Pereira, António Tabucchi

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Afirma Pereira, de António Tabucchi, conceituado escritor italiano que viveu durante uns anos em Lisboa, ganhou pó nas estantes lá de casa durante mais de vinte anos, romance sempre adiado, mas finalmente chegou a sua hora, boa hora essa em que o resgatei da estante.

Li-o avidamente num dia de férias, e quando se lê 150 páginas duma escrita escorreita, mas sem pressas, que demora o seu tempo, é sinal de que estamos a gostar do que estamos a ler, e eu gostei, muito.

O senhor Pereira é um senhor de idade, viúvo, só, confortavelmente instalado na sua vida estabelecida num Portugal amordaçado do final dos anos 30, quando o fascismo grassa Europa fora, quando a Espanha está assolada pela guerra civil, quando os submarinos de Mussolini espalham a força, quando a nossa polícia política começa a pôr as garras de fora em sintonia com os ares ameaçadores daquele tempo, da supremacia ariana, esses ares em que já acreditámos, no pretérito, nunca mais voltar a respirar, nessa altura tudo o que o senhor Pereira fazia era traduzir os seus autores franceses, falar com o retrato da esposa, recordar a infância e esperar pela morte, tudo isso enquanto comia as suas omeletes com ervas e bebia as suas limonadas, sim, acompanhámos imensas vezes o senhor Pereira nas suas monótonas refeições, mas foi este rame rame que nos familiarizou com a essência do senhor Pereira, um homem bom, apolítico, que vivia no passado sem saber lidar com o presente nem pensar no futuro.

Até que dois jovens atrevidos e intrépidos lhe irrompem na sua pacatez, sempre os jovens a trazer a disrupção, e um médico modernaço e sensível lhe explica a teoria dos blocos, que todos nós somos um conjunto de blocos governados por um eu hegemónico, e que esse eu hegemónico pode mudar ao longo da nossa vida, desnorteando o nosso senhor Pereira, sobretudo por o tentar convencer que o passado deve ser apenas uma memória boa, mas que enquanto estivermos vivos deve ser no presente que devemos querer estar.

A própria construção da narrativa, com a fórmula Pereira afirma, reforça a forma como ficamos presos ao desenlace, dando um início quase bucólico - por uma Lisboa a derreter de calor - lugar a uma intriga política, em que há mistério, mas também há a transformação de um homem decente, que resiste ao opressor, porque podemos não ser capazes de combater o mal, podemos nunca ter essa coragem de que só alguns heróis dispõem, mas o nosso silêncio jamais será comprado – porque é que isto soa a tão assustadoramente atual?

Afirma Pereira é um belíssimo livro, e muito imagético, talvez por a ação se desenrolar nas ruas que qualquer lisboeta conhece, eu próprio fui vizinho vários anos da redação do senhor Pereira, salvo seja, sendo que este belíssimo livro daria certamente lugar a um belíssimo filme, ups, quase me esquecia, o filme já existe, foi realizado em 1995 por Roberto Faenza com o grande Marcelo Mastroianni a fazer de senhor Pereira, não vejo a hora de descobrir maneira de ver o filme.

 

15
Jun25

Dos lugares especiais - ilha de Mykonos, Grécia

BURRO VELHO

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Na minha primeira visita à Grécia, podia ter ido ao encontro do berço da nossa civilização em sítios como a Acrópole, ter procurado a espiritualidade de Meteora ou, tão só, a efervescência de Atenas, mas, qual heresia, preteri a cultura por uma ilha no meio do mar Egeu, Mykonos foi a eleita.

Discordando desde já de mim próprio, numas férias nesta ilha das Cíclades também há lugar para a alta cultura, basta apanhar o barco e mesmo em frente está a ilha de Delos, berço de dois importantes Deuses, Apolo e Artémis, com um conjunto de ruínas que dão ares daquele que foi um importante porto e santuário da antiguidade clássica, portanto, se não prescindimos de alta cultura numas férias, também temos alta cultura em Mykonos.

Uma viagem cultural não passa apenas por museus e afins, passa em igual medida por conhecer um pouco como a população local vive, o que as pessoas comem, como se organizam e como se divertem, quando temos a oportunidade e o privilégio de convivermos com essas diferentes dimensões regressamos sempre muito mais ricos, e creio que ninguém contestará que estamos sempre a falar de cultura.

A ilha de Mykonos é sobejamente conhecida pelas suas praias paradisíacas, a sua principal atração, águas cristalinas e quentes, a par de uma vida vibrante na elegante cidade de Chora, a capital, com as suas casas alvas espraiadas à beira-mar, atulhada de pessoas em festa a gozarem as suas férias, seja a comer, a dançar, a calcorrear ruelas estreitas ou a tirarem as melhores selfies em Little Venice, Chora é um charme, com várias galerias de arte e lojas com pinta, quem chega num cruzeiro e desembarca por umas horas na cidade irá certamente encantado com a cidade, sim, se Lisboa sofre do mal dos cruzeiros, a Grécia sofre muito mais, mastodontes poluentes que descarregam pessoas por um par de horas para comprarem um íman para o frigorífico e põem mais um visto nos locais visitados.

Mas quem tem a sorte de ficar mais tempo, terá a oportunidade de conhecer um pouco mais, de conhecer uma ilha cheia de coisas maravilhosas e de algumas não assim tão boas.

O custo de vida da ilha muito elevado, dizem-me que é o sítio mais caro da Grécia, apenas acompanhada por Atenas, que nenhuma outra ilha é assim, mas ali os preços são de facto exorbitantes e paga-se para tudo, pelo menos até começares a descobrir melhor a ilha e ao fim de alguns dias perceberes que consegues encontrar praias paradisíacas, restaurantes fantásticos e sítios para estacionar sem seres esmifrado até ao tutano.

O trânsito é intenso, quase caótico, é impressionante o número de carros, aceleras e afins a circular, temos sempre alguém colado à nossa traseira, transportes públicos só mesmo para inglês ver.

Há vários sinais de que não estamos num país rico, seja na malha sol de ferro que usam para fazer as vedações dos terrenos, um bocadinho às três pancadas, seja na quase inexistência de imigrantes, os trabalhos comuns ainda são realizados por gregos, ou um sem fim de construções ilegais que não têm nem água nem saneamento e obrigam à profusa circulação de autotanques para remediar o que olhos fechados à corrupção permitiram durante décadas a fio, mas o primeiro sinal de todos de que não estamos num país risco é a fuga aos impostos, não há uma alma que não te peça para pagares em dinheiro e esqueceres o cartão, uma única, se pagar com dinheiro fazemos 10% de desconto, ouves isto em todo o lado.

E a falta de rendimentos durante oito meses do ano obriga as pessoas a explorarem ao máximo os euros do turismo, além dos preços irrazoáveis a forma descarada e insistente como te pedem gorjetas de 15% e 20% chega a ser aflitiva, mas estás de férias, a ilha merece, as pessoas merecem, como recusar?

Quanto à natureza, nem tudo é perfeito naquele paraíso, ou tens uma ventania desgraçada ou tens mosquitos, normalmente a ventania leva a melhor, as minhas alergias às picadelas muito agradeceram.

Resolvida a perspetiva menos simpática, Mykonos é definitivamente um esplendor, dona de uma simplicidade e de um je ne sais quoi, uma joie de vivre, ímpares.

A leve ondulação das colinas rochosas com as suas casas de pedra e paredes pintadas de branco com janelas azuis, o mar cor de esmeralda sempre ao fundo, a vegetação fustigada pelo sol e vento mas sempre com uma figueira da índia, oleandro ou buganvília a decorarem o cenário, e centenas de capelas ortodoxas que enchem a paisagem, sinal da devoção e da religiosidade das pessoas, que em tempos idos queriam agradecer e pedir proteção dos males que o mar podia trazer, a paisagem é muito bonita.

Há ainda duas coisas a destacar, e enaltecer, as pessoas e a comida.

A comida tem uma base muito elementar, quase frugal, mas carregadinha de sabor, todas as refeições foram orgásticas, tens peixe ou marisco (quem faz questão da carne não se inquiete porque não lhe faltará, sobretudo borrego), juntas-lhe azeite, azeitonas, tomate, verduras, queijo feta e molho tzatziki, com algumas derivações, e tudo te sabe pela vida. E o vinho, ai o vinho, não das ilhas, naturalmente, ali as videiras contam-se pelos dedos, mas da Grécia continental.

As pessoas, são contagiantes na vida que trazem consigo, a força e a alegria com que se abraçam uns aos outros, o respeito e educação com que nos tratam a nós visitantes, não sendo gentis, um pouco estouvados até, são sem sombra de dúvida muito empáticos, não tão diferentes de nós portugueses, pareceu-me.

E se há sítios mais remotos que são autênticas pérolas, como Fokos, onde chegamos depois de uma estrada de terra batida em que nos espera uma praia quase deserta, alguns cavalos e um pequeno restaurante donde não vamos querer sair de tão bom que é, mas se Chora é festa e sofisticação, Ano Mera, a segunda cidade da ilha, situada no centro, é a alma - uma praça com vários restaurantes aonde o turista estrangeiro não predomina e onde no fim da refeição já sabemos os nomes dos empregados, com a dona a fazer-nos festinhas no cabelo ou abraçada a nós enquanto vamos comendo, as dezenas de crianças que saíram de casa e brincam como se não houvesse amanhã, crianças livres, muitas, que brincam como a minha geração brincou nas ruas, o pequeno e insipiente comércio local, a torre altaneira do convento, saímos de Ano Mera de barriga e de coração cheio, saímos de Ano Mera a sentirmo-nos muito mais próximos daquelas gentes.

E não esquecer, gatos, há gatos por todo o lado, mas se não lhes achar piada basta não lhes fazer meiguices nem dar comida que eles não chateiam ninguém.

Não há sítios perfeitos, e não foi a Merkel que levou a Grécia à falência, foi a Grécia que me levou a mim à falência, mas este pedaço da Grécia por onde tive a fortuna de veranear, a ilha de Mykonos, anda lá perto.

 

10
Jun25

Dos filmes de que gosto - Ossos e Nomes, de Fabian Stumm

BURRO VELHO

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Sete da tarde, dia de neura, não te apetece ir já para casa e resolves enfiar-te numa sessão de cinema, que filmes estão agora, olha aqui um alemão e eu normalmente dou-me bem com os filmes alemães, gosto de ver filmes alemães não só pela língua, mas, sobretudo, pela sociedade alemã retratada que é sempre algo que me suscita muito interesse.

Ossos e Nomes (Knochen und Namen), de Fabian Stumm, que bela surpresa, será preciso estar no mood certo para apreciar o filme, admito, mas naquele dia às sete da tarde eu estava definitivamente com esse mood.

Boris e Jonathan são um casal de uma certa elite intelectual de Berlim, um escritor, o outro ator, ainda não estão propriamente em crise mas percebem que começam a estar distantes um do outro, já implicam mais do que conversam, já se irritam mais do que riem, com impactos na suas vidas profissionais, um escritor desinspirado e um ator que tende a misturar a realidade com ficção, sendo este jogo um dos aspetos mais estimulantes, a forma como os ensaios do filme se entrelaçam com a vida das personagens, a forma como a fala das personagens se entrecruza com a fala das personagens do filme dentro do filme.

Cada cena demora o tempo certo, não é um slow movie mas podemos respirar em cada cena, e os planos são normalmente muito depurados, desenquadrados, até meio desengonçados, muitas vezes só uma parede branca ou uma janela, quase como se estivéssemos num consultório a fazer terapia, sendo que para mim esta opção do realizador resultou muito bem.

Fabian Stumm escreveu, interpretou e realizou Ossos e Nomes, porque no fim somos todos apenas isso, ossos e nomes, gostei muito.

E o meu reconhecimento às pequenas distribuidoras que nos permitem ver estes filmes que levam tão pouca gente às salas de cinema.

 

06
Jun25

Das coisas de futebol - a seleção, Vitinha, Cristiano e Roberto Martinez

BURRO VELHO

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"Portugal é o país mais rico do mundo em termos de talento futebolístico por quilómetro quadrado. A par da Espanha, não há outras equipa com mais jogadores brilhantes para o jogo interior. No entanto, o selecionador Roberto Martinez prefere ser cauteloso. Contra a Alemanha, o espanhol organizou a sua equipa para esperar em vez de pressionar. Permitiu que a Alemanha se espalhasse para lá da linha do meio-campo e preparou tudo para recuperar perto da baliza e explorar o espaço dado ao adversário. Tudo contra a natureza dos seus jogadores mais criativos. Tudo para favorecer as corridas de Cristiano, ao serviço do qual fez alinhar dois extremos que passaram a primeira parte a fazer cruzamentos. Trincao na direita e Pedro Neto na esquerda. O dispositivo não funcionou.

Graças a jogadores como Bernardo Silva, Vitinha, João Neves ou Bruno Fernandes, o futebol português está a subir à estratosfera. Equipas como o Manchester City e o PSG são a prova disso. A seleção nacional, no entanto, continua ancorada no cais de Cristiano. Está à espera da chuva de uma tempestade que já passou. Aos 40 anos, Cristiano está numa forma admirável para a liga saudita. Pode funcionar como um trunfo na segunda parte. Um verdadeiro espalha brasas, como se diz em Portugal, um agitador de emergência. Nada disso. Roberto Martinez utiliza-o como um instrumento estratégico. Portugal jogou com o seu antigo capitão no último Campeonato da Europa e as consequências foram eloquentes. A um ano do Campeonato do Mundo, a equipa ainda está num ciclo de nostalgia. Contra a Alemanha, a operação repetiu-se".

Não sou que o digo, é o jornalista Diego Torres, do jornal espanhol El País, no rescaldo da meias-finais da Taça das Nações contra a Alemanha.

Com este selecionador não será fácil, mas Força Portugal!

 

 

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