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BURRO VELHO

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05
Mai25

Das minhas pazes com Saramago

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Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”, citação do livro ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’ de José Saramago, livro banido por Sousa Lara e Cavaco por ofender a moral cristã, perdoai-os Senhor.

 

Até hoje li apenas três livros de Saramago, ou melhor, apenas dois, Todos Os Nomes, de que gostei moderadamente, e Ensaio Sobre a Cegueira, que amei compulsivamente, do Memorial do Convento, apesar de várias insistências, nunca consegui passar das primeiras páginas.

Sempre tive uma relação algo ambígua com José Saramago, reconhecendo-lhe o génio, e até me deixando contagiar por ele, sempre nutri alguma embirração pela persona, o preconceito do artista comunista que apregoa uma coisa mas que procura para si os luxos paradisíacos numa ilha estrangeira, alguém quase ingrata que deixara para trás o seu país.

Perante artistas estrangeiros é-me mais fácil distanciar a obra da pessoa, por mais polémicos que possam ser ou ter sido, continuarei sempre a ser fã de Woody Allen, Kevin Spacey ou Vargas Llosa, por exemplo, mas, não entendo bem porquê, tal já não me acontece com artistas portugueses, é impensável para mim ler qualquer livro de José Rodrigues dos Santos.

E foi assim que nunca mais voltei a Saramago, até fui comprando alguns dos seus livros, mas nunca mais tive vontade de o ler, a embirração gratuita a sobrepor-se à literatura, é o que é, ou foi o que foi.

Há alguns anos, o belíssimo documentário José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, com a inesquecível banda sonora de Noiserv, quase que me conseguiu reconciliar com Saramago, mas se resolveu a minha embirração, na verdade voltei a esquecê-lo.

Recentemente tive o privilégio de visitar a casa onde residiu nos últimos anos da sua vida, em Tías, na ilha Canária de Lanzarote, e deixem-me partilhar convosco, que emoção que foi.

Estar no meio dos seus objetos, das suas memórias, ver o mesmo horizonte que ele via, conhecer as suas rotinas, ouvir as suas palavras, compreender a sua história, imaginar tantas personalidades fascinantes sentadas na mesa daquela cozinha, desde Soares, a Almodôvar ou o já aqui falado Vargas Llosa, ver a oliveira que levou da sua terra, ver uma foto da nora do rio da cidade onde eu nasci na capa de um dos livros da sua biblioteca, ver os gatos dos cunhados a dormirem sossegados, provavelmente já ali dormiriam quando Saramago ali se sentava, ver o despojamento como vivia, pressentir a paz e o amor com que se rodeava, testemunhar o seu amor pelos livros, por Pilar, por Portugal, foi mesmo muito emotivo.

A senhora que nos guiou nesta visita, encantadora, chama-se Alba, e ao falar-nos de José disse algo que quase me fez corrigi-la, que algures no tempo, no tempo de Cavaco, os portugueses se tinham zangado com Saramago, estive quase quase para lhe dizer, Alba, querida Alba, eu até podia embirrar com ele, mas nós portugueses nunca nos zangámos com ele, sempre foi acarinhado por nós, o Cavaco é um burro, ele não conta, mas acabei por ficar em silêncio, a respirar o ar de Portugal que se respira naquela casa de Tías, Lanzarote.

E se reconciliado eu já estava, vim de lá a sentir uma pulsão urgente de encontrar esse DVD algures perdido de José e Pilar, e regressarei definitivamente, sem demoras, aos seus livros, a qual ainda não sei, olho para a estante e vejo de imediato As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante, A Caverna e O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas, para as pazes serem completas, talvez vá mesmo procurar o sempre interrompido Memorial do Convento.

Obrigado José.

 

28
Mar25

Dos meus livros - Olhos Azuis, Cabelo Preto, de Marguerite Duras

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Ele gay apaixona-se por uma visão súbita de um outro ele de olhos azuis e cabelo preto, ela foi amante fugaz desses olhos azuis numa noite de verão, mais tarde ele encontra-a e, sem saberem dessa ligação comum ao homem de olhos azuis, ele paga-lhe para ela se esconder com ele numa casa em cima do mar, por onde passam muitos eles para irem à procura de sexo escondido no meio das rochas, e nesse período ela consegue encontrar-se com um terceiro ele, num quarto alugado, até aos dias entardecerem, ele, ela e ele de olhos azuis e cabelo preto, ela acaba por se apaixonar por ele mas não é correspondida, ele precisa dela para não esquecer aquele homem que os une, o de olhos azuis.

Aqui há dias precisei de escolher um livro com poucas páginas e fácil de transportar, fui à estante e peguei neste há muito adiado ‘Olhos Azuis, Cabelo Preto’, de Marguerite Duras, uma história desconcertante, e desconexa, de desamor, de angústia, de amores falhos, de amores que não se conciliam nem conseguem comunicar, de súplicas e lágrimas, de sofrimento sentido e infligido tão próprio de dois amantes que não se amam.

Olhos Azuis, Cabelo Preto é um romance de poucas páginas, talvez por isso o tenha lido até ao fim, porque queria descobrir o fim daquelas personagens e por encontrar no livro frases bonitas, palavras bonitas, há ali uma poesia sempre presente, mas é um livro de difícil leitura, foi-me difícil entrar na sua mecânica tão repetitiva, tão sincopada, poética e árida ao mesmo tempo.

A autora não tem de facilitar a vida ao leitor, mas sinceramente para mim estes Olhos Azuis, Cabelo Preto foi mais um exercício de estilo com que a escritora nos quis impressionar, ela domina esta arte de escrever com criatividade e engenho, mas lamentavelmente este leitor não ficou convencido, nem bem impressionado, tão pouco agradado.

Guardo na memória, já muito longínqua, é verdade, dois livros de Duras de que gostei muito, Dez Horas e Meia Numa Noite de Verão, e, sobretudo, O Amante, mas não sei se darei outra oportunidade a Duras, até para preservar esse gosto que lhe guardo.

 

20
Mar25

Dos meus livros - Como Poeira Ao Vento, de Leonardo Padura

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Demorei imenso tempo a ler este romance do cubano Leonardo Padura, Como Poeira Ao Vento, devo dizer que empastelei muito no início, os dramas da jovem Adela nova-iorquina apaixonada por tudo o que tenha a ver com Cuba não me conseguia prender a atenção, mas como não desisto facilmente de um livro insisti, insisti, e em boa hora insisti.

A narrativa acompanha a história de um grupo de amigos, o clã, ao longo de várias décadas, de 1990 aos dias de hoje, havendo ali uma trama ligeira de mistério e suspense que cumpre a sua função, a partir de certa altura cativa-nos na curiosidade de saber, ou confirmar, o (presumível) desenlace, mas este lado novelístico tem um propósito, guiar-nos por estas personagens e conhecermos um pouco melhor a realidade cubana, a miséria, a penúria que médicos e engenheiros têm de enfrentar para sobreviver, a desolação de quem vê os seus partir e as dores de quem vive no exílio, o sentimento de sermos estrangeiros e a necessidade de pertencermos a uma comunidade, os salvíficos laços de amizade, as amizades que nos salvam.

Para considerar um romancista como um dos meus escritores tenho como regra ter-me entusiasmado com três das suas obras, depois de Hereges e deste Como Poeira ao Vento, falta-me apenas um para Leonardo Padura ser também um dos meus escritores, estamos no bom caminho 😊.

 

23
Nov24

Dos livros e das séries que amamos - A Amiga Genial

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Amizade, inveja, vingança, ambição, ciúmes, crime organizado, misoginia, luta de classes, encontramos tudo isto na obra-prima de Elena Ferrante, A Amiga Genial acompanha duas miúdas napolitanas ao longo de seis décadas, num autêntico fresco dos costumes e da política da sociedade italiana, o comunismo e o fascismo, o boom económico, a emancipação da mulher, o direito ao divórcio, a corrupção das instituições, a escola como única forma legítima de elevador social, no fundo a história de todo o Sul da Europa, tudo com uma subtileza intimista e uma força coletiva tão crua, potenciada pelo uso do dialeto napolitano, que não descansei até ter visitado Nápoles, para respirar um pouco o ar daquele caos e daquelas personagens, tendo o livro alcançado grande consagração a nível mundial, recentemente uma sondagem do New York Times considerou-o como o melhor livro (na verdade são quatro) do século XXI.

Estranhamente, muito estranhamente, a série homónima da HBO, com a própria Elena Ferrante a colaborar na adaptação do argumento, tem passado absolutamente despercebida, nada de prémios, artigos de opinião ou qualquer tipo de falatório, uma quase inexistência, mas agora que saiu o último episódio da quarta (e última) temporada, diz o New York Times que é uma das melhores séries dos últimos anos, a par de Breaking Bad, com o qual apenas concordo parcialmente, só porque não vi Breaking Bad.

À partida os fãs do livro não tinham muita fé que a série televisiva conseguisse captar todas as nuances intimistas dos livros, mas conseguiu-o na perfeição, a amizade incondicional de Lenu e de Lila conduz-nos por todos os podres que habitam dentro de nós, desde aqueles que vivem do pequeno crime para sobreviver no bairro pobre de Nápoles, até à elite intelectual de Florença ou Turim, devendo-se grande parte do êxito da série ao talento das dezenas e dezenas de atores e atrizes, desde logo com a predestinada Alba Rohrwacher, mas também ao cuidado absolutamente irrepreensível da direção artística, é um regalo permanente para os nossos olhos vermos a evolução da moda, dos penteados, as decorações das casas, os papeis de parede, os carros da Fiat e Lancia, os iogurtes e os sumos nas estantes dos supermercados, as músicas e as formas de dançar, tudo aquilo que vemos em cada cena de cada um dos episódios tornam A Amiga Genial uma série entusiasmante e imersiva.

Uma pessoa até pode sair do bairro onde nasceu, mas o bairro dificilmente sai de dentro de nós.

Bravíssimo!

 

30
Out24

Dos meus livros - Less, de Andrew Sean Greer

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LESS, do escritor californiano Andrew Sean Greer, vencedor do Prémio Pullitzer em 2018, é um romance divertido ou satírico, como preferirem, escrito (muito bem escrito, diga-se) de forma leve e despretensiosa, sobre Arthur Less, um escritor falhado, sem dinheiro e prestes a fazer 50 anos, que, para fugir ao casamento do seu ex-namorado, resolve aceitar todo o tipo de convites para eventos literários e foge para o outro lado do mundo, é a história de um falhado, rodeado de egos gigantes, que parece não aceitar o seu envelhecimento mas que parodia com a sua vaidade e ansiedade da forma que só aqueles que se riem de si próprios sabem fazer, sem autocomiseração, um sedutor com graça.

Nesta história em que todos falham, sem vidas perfeitas, em que as pequenas desgraças se sucedem, em que as personagens têm medo de chegar aos 50 e convencem-se que têm de desistir do amor e começar a engordar convictamente, há espaço para a ingenuidade de quem afinal nunca deixou de acreditar no amor e na felicidade, há espaço para aqueles que abandonam grandes feitos e resgatam para si a alegria que os derrotados aprendem a reconhecer nas pequenas coisas, na monotonia das pequenas mundanidades e no conforto de termos alguém à nossa espera, encantadora esta sabedoria dos 50 anos.

 

20
Set24

Dos meus livros - Cinco Esquinas, de Mario Vargas Llosa

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Predomina o sentimento de que estamos a ler as notícias cor-de-rosa da revista Hola, personagens burguesas, frívolas, simplistas, a forçar muito a nota num erotismo de seda, mas Vargas Llosa não sabe escrever mal, Vargas Llosa é absolutamente um dos maiores escritores vivos e oferece-nos um livro que se lê de forma trepidante, envolvendo-nos na negritude da ditadura do ex-Presidente Fujimori (contra quem Vargas Llosa concorreu nas eleições presidenciais de 1990, falecido há poucos dias depois de ter passado alguns anos na prisão), que na crueldade da sua polícia política, a par dos sequestros frequentes nessa época do Sendero Luminoso e outros grupos terroristas, trazia o medo e a miséria aos Peruanos, havendo no entanto sempre alguém que tentava erguer mais alto a sua voz de coragem numa luz de esperança. Tudo isto enquanto os ricos iam a Miami ter as suas aventuras proibidas e esbanjar os seus milhões.

Para mim CINCO ESQUINAS está a anos luz de livros como Travessuras da Menina Má, O Sonho do Celta, O Herói discreto, História de Mayta ou A Tia Julia e o Escrevedor, a profundidade e a sensibilidade que reconheço em Vargas Llosa não parece morar aqui, a densidade parece que deu lugar à futilidade, se esta fosse a minha estreia no autor receio que não mais voltaria a si, mas ainda assim lê-se CINCO ESQUINAS com muito agrado e voltarei sempre e sempre a Vargas Llosa.

 

02
Set24

Dos meus livros - Uma Brancura Luminosa, de Jon Fosse

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Estreei-me no recém laureado com prémio Nobel, o norueguês Jon Fosse, com o seu último livro UMA BRANCURA LUMINOSA, uma espécie de conto com pouco mais de 50 páginas, com uma escrita estruturada numa fórmula muito sincopada e repetitiva, de frases muito curtas arrumadas num único parágrafo, que convoca o leitor a mergulhar numa história onírica, com laivos de suspense, sobre a solidão de um homem que parte numa breve viagem sem destino conhecido.

Não é definitivamente um romance de grande fôlego, mas de uma penada é uma leitura completamente imersiva e comovente, é um belíssimo conto em forma de poesia, ou poesia na forma de um belíssimo conto.

 

22
Ago24

Dos meus livros - O Quarto de Giovanni, de James Baldwin

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O QUARTO DE GIOVANNI, um clássico de um dos principais escritores e ativistas norte-americano do século XX, James Baldwin, desenrola-se em Paris dos anos 50, com o expatriado David (tal como o próprio Baldwin) a envolver as outras duas personagens de um triângulo amoroso, Giovanni e Hella, na sua luta interna de descoberta e aceitação da sua identidade sexual, procurando não defraudar as expetativas que o seu pai e a sociedade têm sobre si, e não quebrar as suas próprias regras que algures concebeu como fundamentais para ser feliz e digno.

A escrita de Baldwin é melancólica e delicada, fazendo-nos voltar algumas vezes atrás para apreciar uma ou outra frase, mas arrasta-nos consigo para a vulnerabilidade destas personagens que se destroem pela força do amor, recordando-nos o autor que “não há muitas pessoas que tenham morrido de amor. Mas multidões pereceram, e estão a perecer a cada hora - e nos lugares mais estranhos! - por falta dele”.

Sempre o Amor. O nosso pelos outros. O dos outros por nós. E o por nós próprios.

 

25
Jul24

Dos meus livros - O Perfume das Flores à Noite, de Leïla Slimani

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Não partilho da opinião daqueles que consideram ‘O Perfume das Flores à Noite’ o melhor livro da franco-marroquina Leïla Slimani, a densidade e o arrebatamento das suas personagens nos seus três romances anteriores – O Jardim do Ogre; Canção Doce; O País dos Outros – não pode ser igual num livro de ensaio, mas neste exercício introspetivo sobre a solidão exigida para a arte de escrever, Slimani envolve-nos numa teia de memórias e evoca várias preocupações que a assaltam, a infância e adolescência, o pai, sempre o pai, o exílio, a orfandade de quem deixou o seu país de origem e nunca se integrou naquele que a acolheu, o próprio perfume das flores à noite, não se tratando tanto de um ensaio pesado sobre literatura, mas sobretudo um pulsar dos afetos da autora.

Lê-se de uma penada de tão fácil e imersiva que é esta escrita, mesmo que carregada de frases às quais apetece voltar várias vezes para as dissecarmos lentamente, como “a primeira regra quando se quer escrever um romance é dizer não”’ ou “o que não dizemos pertence-nos para sempre”.

 

11
Jul24

Dos meus livros - O chão dos pardais, de Dulce Maria Cardoso

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Dulce Maria Cardoso é uma escritora fenomenal, dona de um estilo muito característico, o de quem escreve com a maior das simplicidades sobre histórias banais de pessoas normais, que sem gorduras e poucas descrições nos oferece uma profunda densidade das suas personagens e nos prende da primeira à última página, e, como tal, Dulce Maria Cardoso só sabe escrever bem ou muitíssimo bem, e não tendo o fôlego de Eliete ou de O Retorno – absolutamente extraordinários -, O Chão dos Pardais, mesmo com um final atamancado e correndo o risco de rapidamente nos esquecermos do mesmo, ainda assim é um livro que nos cativa e que se lê num ápice.

 

 

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