Das minhas pazes com Saramago
“Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”, citação do livro ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’ de José Saramago, livro banido por Sousa Lara e Cavaco por ofender a moral cristã, perdoai-os Senhor.
Até hoje li apenas três livros de Saramago, ou melhor, apenas dois, Todos Os Nomes, de que gostei moderadamente, e Ensaio Sobre a Cegueira, que amei compulsivamente, do Memorial do Convento, apesar de várias insistências, nunca consegui passar das primeiras páginas.
Sempre tive uma relação algo ambígua com José Saramago, reconhecendo-lhe o génio, e até me deixando contagiar por ele, sempre nutri alguma embirração pela persona, o preconceito do artista comunista que apregoa uma coisa mas que procura para si os luxos paradisíacos numa ilha estrangeira, alguém quase ingrata que deixara para trás o seu país.
Perante artistas estrangeiros é-me mais fácil distanciar a obra da pessoa, por mais polémicos que possam ser ou ter sido, continuarei sempre a ser fã de Woody Allen, Kevin Spacey ou Vargas Llosa, por exemplo, mas, não entendo bem porquê, tal já não me acontece com artistas portugueses, é impensável para mim ler qualquer livro de José Rodrigues dos Santos.
E foi assim que nunca mais voltei a Saramago, até fui comprando alguns dos seus livros, mas nunca mais tive vontade de o ler, a embirração gratuita a sobrepor-se à literatura, é o que é, ou foi o que foi.
Há alguns anos, o belíssimo documentário José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, com a inesquecível banda sonora de Noiserv, quase que me conseguiu reconciliar com Saramago, mas se resolveu a minha embirração, na verdade voltei a esquecê-lo.
Recentemente tive o privilégio de visitar a casa onde residiu nos últimos anos da sua vida, em Tías, na ilha Canária de Lanzarote, e deixem-me partilhar convosco, que emoção que foi.
Estar no meio dos seus objetos, das suas memórias, ver o mesmo horizonte que ele via, conhecer as suas rotinas, ouvir as suas palavras, compreender a sua história, imaginar tantas personalidades fascinantes sentadas na mesa daquela cozinha, desde Soares, a Almodôvar ou o já aqui falado Vargas Llosa, ver a oliveira que levou da sua terra, ver uma foto da nora do rio da cidade onde eu nasci na capa de um dos livros da sua biblioteca, ver os gatos dos cunhados a dormirem sossegados, provavelmente já ali dormiriam quando Saramago ali se sentava, ver o despojamento como vivia, pressentir a paz e o amor com que se rodeava, testemunhar o seu amor pelos livros, por Pilar, por Portugal, foi mesmo muito emotivo.
A senhora que nos guiou nesta visita, encantadora, chama-se Alba, e ao falar-nos de José disse algo que quase me fez corrigi-la, que algures no tempo, no tempo de Cavaco, os portugueses se tinham zangado com Saramago, estive quase quase para lhe dizer, Alba, querida Alba, eu até podia embirrar com ele, mas nós portugueses nunca nos zangámos com ele, sempre foi acarinhado por nós, o Cavaco é um burro, ele não conta, mas acabei por ficar em silêncio, a respirar o ar de Portugal que se respira naquela casa de Tías, Lanzarote.
E se reconciliado eu já estava, vim de lá a sentir uma pulsão urgente de encontrar esse DVD algures perdido de José e Pilar, e regressarei definitivamente, sem demoras, aos seus livros, a qual ainda não sei, olho para a estante e vejo de imediato As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante, A Caverna e O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas, para as pazes serem completas, talvez vá mesmo procurar o sempre interrompido Memorial do Convento.
Obrigado José.