Dos lugares especiais - Nápoles
Antes mesmo de aterrar no aeroporto estava já convencido que ia adorar a cidade, tal a firme sensação de que já a conhecia sem lá nunca antes ter posto os pés, mas nos últimos anos fui sendo conduzido pelos livros da Elena Ferrante, pelos filmes do Paolo Sorrentino ou por séries como 'Gomorra' ou ‘A vida mentirosa dos adultos’, por isso não foi para mim uma surpresa perceber que Nápoles é uma cidade mal-amada e tem muitas razões para o ser, é degradada, suja, está pejada de lixo por (quase) toda a parte, as ruas cheiram a xixi (Lisboa também, diga-se), vê-se cocó e vomitado humano ao dobrar duma qualquer esquina, baratas em bardo a correr à nossa frente, as pessoas são brutas, mal-encaradas, mal vestidas, deitadas pelos cantos, escarram para o chão, não param nas passadeiras (isso é o quê mesmo?) e não se entende uma palavra do que dizem, o trânsito é caótico e toda a gente buzina por tudo e por nada, as motas pululam por todo o lado com tangentes tão apertadas que muitas vezes nos tocam, pressente-se uma insegurança iminente que ao início imaginamos que a qualquer momento pode descambar nalgum incidente, Nápoles não é elegante, não tem o charme que Itália nos costuma oferecer, Nápoles é pobre, Nápoles tem tudo para ser um sítio nada gostável, é uma cidade que facilmente se odeia, ou que se ama, sendo eu dos felizardos que a ama e este texto é uma declaração de amor a esta cidade do sul de Itália.
Como não amar um sítio onde os seus habitantes veneram e festejam os seus ídolos como os napolitanos tão apaixonadamente o fazem, como não adorar um sítio que adora de forma tão desmedida Maradona, Sofia Loren ou Totó?
Como não amar um sítio onde somos condenados a comer tão maravilhosamente bem, parece-me impossível comer mal em qualquer que seja o boteco que possamos entrar, e sempre a preços muito em conta, as pizzas, as pastas, o ragú, a panna cotta, os sfogliatelle ou os babás, não há como errar, a generalidade deles e delas roçam o obeso mas como censurá-los por isso?
É raro o habitante local que nos trata com gentileza e nos oferece um sorriso, mais raro ainda o que tenta fazer-se explicar, mas é um povo intenso, festivo, exagerado, as ruas estão apinhadas de gente - ah porque hoje é sexta ou sábado à noite, as aulas estão a acabar -, mentira, ao domingo à noite as ruas continuam cheias, e durante a semana igualmente, as pessoas vivem na rua, fazem festa na rua, é uma cidade plena de vida, e sobretudo uma cidade de jovens, não me recordo de ver tantos jovens na rua, no início da sua adolescência, aos bandos, sem adultos, até altas horas da madrugada, não me recordo mesmo de alguma vez ter visto algo parecido, mas o que mais espanto me causou foi ver dezenas de miúdos num vaivém cima abaixo a atravessar de mota a calçada das praças, com as meninas embevecidas com as suas carteiras ao ombro, derretidas, e eles galifões orgulhosos, muito novos, no meio das praças de quem nós pedestres nos temos de desviar, mas sabem, não lhes notei pinga de agressividade ou insolência, só garotos a serem felizes.
E andar de transportes públicos, cheios, a abarrotar, a algazarra que não é, sobretudo nos comboios, a forma como falam aos berros entre si, como entoam cânticos ou assobiam entre grupos num código ou linguagem que não percebi, um burburinho que só tal.
Os edifícios são lindos, monumentais, lembrou-me Havana ou Budapeste, com as suas heranças arquitetónicas ancestrais mas, em escalas diferentes, votadas à degradação, mas uma degradação encantadora, qualquer pedra respira história, e a Campânia deve ser uma zona rica em pedra porque ao longo dos séculos as famílias napolitanas construíram centenas de igrejas – Nápoles tem mais igrejas do que Roma -, todas lindíssimas, pelo menos aquelas que eu consegui visitar até me ter fartado.
Na Capela San Severo está a que dizem ser a estátua mais bonita do mundo, o Cristo Velato - eu não vi todas as estátuas do mundo, esta é sem dúvida a mais bonita que eu já vi.
Talvez com exceção da ultra requintada pastelaria Gambrinus, Nápoles não é uma cidade sofisticada, vemos muitas trepadeiras, muitas glicínias, jasmins, vinhas virgens e oleandros, mas não vemos canteiros de flores delicadas da mesma maneira que vemos em tantos outros sítios transalpinos, os terraços das casas espalhados por toda a cidade são espartanos, têm uma mesa, 4 cadeiras e com sorte 2 espreguiçadeiras, nada de plantas decorativas ou toldos refrescantes, os napolitanos não serão todos pobres, mas são despojados, e isso reflete-se nos preços das coisas, da comida, das casas, até dos carros que circulam nas ruas, ao contrário dos topos de gama que vi no norte, aqui é a terra dos Fiat, Lancia e Suzuki, aos anos que eu não via um Y10, pequeninos para se conseguirem estacionar.
Também há os bairros cuidados com pessoas bem-vestidas e lojas mais europeias, como as zonas de Chiaia ou Vomero para os lados da Via Comunale em frente ao mar, mas os bairros que predominam são aqueles de casas minúsculas, em que a única janela são as portas para a rua e que obrigam as pessoas a a escancarar a sua casa a quem passa, com os seus altares e oratórios montados em cada esquina, com as suas roupas estendidas em estendais improvisados com todas as intimidades à mostra, sendo que na verdade encontramos tudo pendurado nas ruas, andar pelas ruas é andar sempre de cabeça a olhar para o ar, seja no Quartieri Spagnoli, na Spaccanapoli ou nalguma mais arrevesada, e aonde mais é que podemos ver as pessoas carregarem as suas compras içando um balde por uma corda até ao último andar?
Ao contrário de Lisboa, o pequeno comércio local impera e é pujante, as livrarias, papelarias e cartelerias abundam, os alfarrabistas e antiquários, as lojas de tecidos ou do pequeno penduricalho que precisamos para arranjar alguma coisa que se avariou, em centenas de lojas no imenso centro histórico há a Zara, H&M, Footlocker, Sisley, Intimissimi e as italianas Calzedonia e Max Mara, mas quem reina é o pequeno estabelecimento que está ali há dezenas de anos, os turistas chegam mas a alma é e será de quem lá mora, que é mais ou menos o mesmo o que está a acontecer com todo o centro histórico de Lisboa - aprendam com os napolitanos senhores autarcas e governantes, não vendam a alma ao turista.
Algo que achei muito curioso, e quase paradoxal, é que ao contrário do que nos é habitual, em que há muito mais lojas de pronto-a-vestir para senhora do que para homem, em Nápoles é ao contrário, há muito mais lojas de roupa masculina, o que não deixa de ser estranho porque eles não cuidam da aparência, são maioritariamente desleixados, parolos mesmo, terei visto 2 ou 3 com aquela elegância italiana absolutamente inalcançável pelo comum dos mortais, mas não me parece que seja dos homens que reza a história.
Permitam-me não ser politicamente correto, mas é a minha opinião e deixo para o fim talvez aquele aspeto que mais me terá impressionado, pela positiva, diga-se, as raparigas – se é indesmentível que em Chiaia vi várias miúdas protótipo da italiana morena, sensual e bem vestida, a grande e esmagadora maioria das moças empenham-se em parecer mais feias do que na verdade são, mal arranjadas, com cabelos desgraçados, roupas baratas que mostram mais do que tapam, todas as banhas de fora, a personificação da bimbalhice, mas, e este é um grande MAS, super confiançudas, aquelas raparigas são plenas de confiança e olham o mundo de frente, não me parece que alguém se lhes atreva a dizer que não têm direito a tudo o que elas quiserem, não saberei explicar melhor, mas achei este traço absolutamente dominante e transversal, a autoestima no olhar de cada miúda sem nada de altivez, que talvez ajude a entender a fama da mulher napolitana, empoderada, forte e destemida, aquelas mulheres que no cinema viram-se tantas vezes retratadas pela Sofia Loren e que eu as vi a atravessarem as ruas com os seus tróleis de compras e quem quiser que se afastasse porque a rua era, e muito bem, toda delas.
Haverá muito mais coisas para amar em Nápoles, não as vi todas, não tive nem essa pretensão nem vontade para tal, não vi por exemplo o Museu Nacional Arqueológico ou a Nápoles Subterrânea, e se pusermos o pé ao redor de Nápoles, então aí já fomos, a magia e o encanto das cidades romanas destruídas pelo Vesúvio, Pompeia e Ercolano, ou das ilhas de Capri ou de Ischia, ou de toda a costa Amalfitana com sítios como Positano ou a Atrani de Patrícia Highsmith, queremos mais e mais, quereremos sempre ver mais e ficar mais.
Nápoles, uma cidade caótica, de excessos e contrastes, Nápoles parece que parou no tempo, talvez algures no início dos anos 70, Nápoles fervilha uma energia contagiante que se nos pega ao corpo, não há como Nápoles.