Dos espetáculos de que gosto - Class Enemy
Um cheiro opressor na sala, um cenário desarrumado, escuro, não se percebe bem o que é, uma cave esquecida de uma qualquer escola de um subúrbio complicado, seis garotos a dar pontapés numa bola, balázios com força que com sorte ainda te acertam em cheio, uma música estridente tocada ao vivo que te buzina ouvidos dentro, asneiredo, impropérios fortes que começam como reações aos xutos na bola mas que rapidamente se transformam na pouca linguagem que estes rapazes têm para se exprimir, uma linguagem violenta que por vezes é um dialeto difícil de acompanhar, lixo acumulado, cuspidelas para o chão, calças descaídas, coçadelas nos genitais, o ambiente é hostil, gera-te desconforto, não te deixa sentar refastelado na cadeira e prende-te à revolta destes seis miúdos em guerra, vítimas e agressores ao mesmo tempo, rejeitados pela escola que não sabe o que fazer com estes alunos problemáticos do nono ano, e esquecidos pela sociedade, alguns mesmos pela família, garotos que comem pão com alho porque simplesmente num dia bom só há alho para misturar com o pão, adolescentes revoltados que se esquecem que há um verbo gostar para pequenas coisas como cuidar de um vaso com uma planta, adolescentes que preferem ser esquecidos na cave de uma escola que os maltrata, do que ir para casa em que são maltratados pelos próprios pais quando estão estes em casa, que diacho de peça esta que nos confronta com a vida difícil destes miúdos que por vezes se cruzam connosco com poses provocadores numa qualquer esquina da cidade.
Quando um dos miúdos, o coxo, atribui as culpas da miséria que o rodeia aos imigrantes, pretos e ciganos, o grupo insurge-se contra ele - até porque um deles também é preto, o Pito – e enfiam-no num balde de lixo, quando estás na merda é fácil deixares que te enfiem mais na merda, e é notável a compaixão que aquele garoto racista gera em ti, ouvi-lo num pranto a queixar-se que nada tem, e se lá a casa nada chega é porque alguém lhes roubou aquilo a que tinham direito, afeto, calças de ganga, comida, dinheiro, salários, e se alguém lhes roubou os salários, dinheiro, comida e até umas calças de ganga, então só podem ter sido os imigrantes, os pretos e os ciganos.
Com encenação de Teresa Sobral a partir de uma peça inglesa escrita em 1978 por Nigel Williams, CLASS ENEMY é daquele teatro que perdura em ti depois de saires porta fora, é teatro que te faz sentir e pensar.
No São Luíz até dia 27 de outubro. Gostei mesmo muito.
PS: Faz mesmo sentido, ou é só politicamente correto, ter dois intérpretes de linguagem gestual escondidos num canto, como é que alguém consegue ter um campo visual que permita vê-los em simultâneo com o que se passa na boca de cena?